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Nos últimos tempos, especialmente com os fenómenos Museu Salazar e  Grandes Portugueses, assistimos a uma vaga de branqueamento da natureza fascista do Estado Novo e do seu principal rosto, António de Oliveira Salazar. Ao mesmo tempo patrocinou-se um combate virtual - António de Oliveira Salazar vs Álvaro Barreirinhas Cunhal, apresentando o primeiro como o ditador que foi e o segundo como o ditador que podia ter sido.

Sobre a primeira questão, importará reter que o Estado Novo, formalizado pela Constituição de 1933, tal como o seu congénere e mentor italiano, baseou-se no conceito fascista de união nacionalista, criando, em torno de uma determinada ideia de Nação, um partido único, uma polícia política, uma máquina estatal de propaganda,  sindicatos corporativos, movimentos de massas, um campo de concentração, etc., etc.,  sempre com o alto patrocínio das elites económicas e religiosas do país. O regime em causa pautou toda a sua existência por sucessivas vagas repressivas que culminavam com a prisão de oposicionistas ao regime, e mesmo o assassinato de algumas dezenas deles. Foram quase 50 anos de intimidação e perseguição a todos aqueles cuja opinião ou conduta não combinasse com o funcionamento e costumes do atávico regime. Todo este cenário configura um Estado de cariz Fascista.

Como o que define o tipo de regime político é a sua natureza e a natureza da Itália de Mussolini, da Espanha de Franco e do Portugal de Salazar é fascista, logo os seus responsáveis foram ditadores fascistas. 

O contributo do Estado Novo para o desenvolvimento do país e para aquilo que hoje somos é também evidente. No período anterior à II Guerra Mundial, Salazar consolidou o seu ideal de sociedade rural, crente e obediente. Ao nível da educação, assistimos à redução do ensino primário de 5 para 3 anos, ao encerramento das Escolas Normais (de formação de professores do ensino primário), à substituição de professores primários por regentes escolares, sem qualquer formação específica para o exercício da função docente. Por outro lado, não se fomentou a industrialização do país, estabilizaram-se e adequaram-se as finanças públicas ao seu conceito de estado e de sociedade.

No pós-guerra, o hábil e ambivalente relacionamento, mantido com os dois beligerantes, permitiu a aceitação do regime por parte dos vencedores. O país aderiu a algumas organizações internacionais e lá foi aplicando as teorias de desenvolvimento da época, iniciando grandes obras públicas, alargando a rede de escolas primárias e avançando com a industrialização do país. Contudo, após alguns avanços nos anos 50, logo nos anos 60, foram refreados os ânimos, não fosse a Nação perder a sua matriz rústica, crente e obediente.

Podemos pois agradecer ao Estado Novo e a António Oliveira Salazar, o contributo para muitos dos nossos problemas actuais: o atraso educativo, o tipo de tecido industrial, os défices sanitários e de saúde pública, a guerra colonial, a emigração de quase dois milhões de portugueses nos anos 60 e 70 e o pedagógico auxílio na construção de uma certa mentalidade portuguesa, boçal, caceteira e lambe botas, ainda hoje existente...

Voltando ao combate virtual, e após classificada a primeira personagem, importará agora definir a segunda, Álvaro Cunhal.

Durante o Estado Novo, Álvaro Cunhal pertenceu àqueles, comunistas ou não, que foram perseguidos, presos, torturados (e assassinados) pelo simples facto de terem outra ideia de sociedade para Portugal. Com uma militância cívica e política que se estendeu por mais de 70 anos, desde finais dos anos 30 até à sua morte, Álvaro Cunhal é a personalidade portuguesa que melhor encarna o que de mais progressista teve o século XX português. Só isto já bastava para desmontar a falsidade da injuriosa comparação. Não se pode meter no mesmo saco a vítima e o algoz.

Alguns reconhecendo que Álvaro Cunhal foi um resistente antifascista, acusam-no, contudo, a ele e ao seu partido, de serem responsáveis pelo PREC, que, segundo dizem, quase destruiu o país, e quase instaurou uma ditadura em Portugal.

Será então que a prática política de Álvaro Cunhal e do PCP é configuradora de uma ditadura?

Só por ignorância ou delírio se pode dizer que sim. Em primeiro lugar, porque há muito o PCP definiu, no seu programa, a construção de uma democracia com vários partidos políticos (inúmeros documentos dão disso testemunho). Quanto ao PREC, convém não esquecer que corresponde ao período do pós 25 de Abril em que se fez a ruptura com o antigo regime, com as suas elites e monopólios. E como todos sabem, não existem processos de ruptura construídos através de consensos entre privilegiados e explorados. E já agora, convirá lembrar que o PREC é o tempo da aliança Povo / MFA, que não foi só feita pelo e com o PCP, mas congregava largos sectores políticos e sociais, desde a extrema-esquerda ao centro e mesmo à direita chamada moderada.

Naturalmente num “tempo quente”, com uma aliança com tantas contradições internas, os problemas surgiram. Mas curiosamente os “exageros” à esquerda e à direita não vieram sequer do PCP.

Foi de todo este processo contraditório que saiu a Constituição de 1976, onde foram plasmados os Direitos Individuais e Colectivos da actual República, embora os últimos tenham sido progressivamente esvaziados pelas sucessivas revisões que a lei fundamental do país foi sofrendo e pelas práticas políticas dos vários governos que se sucederam. Aliás, vem a propósito questionarmo-nos - será que os problemas de hoje: o encerramento de escolas e jardins de infância, maternidades, SAP’s, Serviços de Urgência, Centros de Saúde, Postos da GNR e Esquadras da PSP, Tribunais e Repartições de Finanças, o aumento dos impostos e taxas sobre as classes populares e as classes médias, etc., etc., etc., são da responsabilidade do regime saído da Constituição de 1976 ou da responsabilidade das políticas daqueles que progressivamente têm patrocinado o seu esvaziamento?

Uma das grandes conquistas da revolução de Abril foi, sem dúvida, o poder local democrático, em que o PCP, integrado na Coligação CDU, tem tido grandes responsabilidades. E já agora, sobre esta matéria, mais uma pergunta – será que a gestão autárquica da CDU pode ser considerada de cariz ditatorial?

Muito pelo contrário, o desempenho da CDU representa mesmo um bom exemplo de prática democrática do poder.

Em síntese - pode-se, ou não, gostar das ideias de Álvaro Cunhal e do PCP, mas não se pode é omitir e distorcer o seu contributo inestimável para a resistência ao Fascismo e para a construção da Democracia que hoje temos.

Por fim - não serão os responsáveis políticos pela construção do actual modelo monopolista liberal, os comparáveis àquele outro, responsável político pelo modelo  monopolista corporativo do  Estado Novo, agora novamente promovido a Salvador?

Ele há gente que adora as botas cardadas!

Francisco Gonçalves