Pedro AlmeidaNesta manhã de Abril, poderia falar-vos com aleluísmo dos amanhãs que cantam, da luta clandestina e da resistência anónima de milhares, daquele que foi um dos momentos mais altos da vida e história de um povo, do fim da longa noite do fascismo, ou ainda dos sonhos traídos de Abril, das tentativas de retrocesso e dos esforços de drenagem da Constituição de 76, das grandes conquistas e do Portugal de Abril. Porém, não tanto porque outros o já fizeram e farão ainda, mas sobretudo porque tenho dúvidas acerca da eficácia de uma tal abordagem, preferirei, se me permitem, falar de nós.

 Começarei por perguntar o que nos faz estar aqui, para depois perceber o que restará em nós, amanhã, desta presença. É claro que a data impõe cerimónias protocolares, e que nós fazemos representar partidos políticos democraticamente eleitos no âmbito local. A nossa presença aqui reveste-se de uma função simbólica, evocativa de um momento histórico do qual somos os legítimos herdeiros, e isso justifica este ritual de memória e homenagem àqueles que tornaram possível esse momento. Mas qual será a verdadeira importância da revolução para cada um, enquanto agente activo da democracia? Isto é, que relação há entre nós e a ausência que tentamos, nesta manhã, tornar mais próxima?

 Não é frequente, no nosso espaço político, revelar-se a fulguração dos valores revolucionários de Abril de 74. Ouso até dizer que, por este fruto, dificilmente chegaríamos a conhecer a árvore. Mas impõe-se aqui uma pergunta: qual o fruto, e qual a árvore? A relação entre poder e estado de excepção nem sempre é clara, e embora ninguém negue que de Abril emergiu de um projecto de sociedade avançada, poucos aceitarão tomar esse projecto como um estado de revolução permanente. Portanto, a questão que se nos coloca, todos os anos neste dia, é: como agir perante a tensão entre poder constituinte e poder constituído? Todos nós (e em particular, é claro, os senhores detentores de órgãos executivos) devemos o estar aqui a essa fractura na história nacional contemporânea. Ocupamos os cargos que ocupamos porque, há 36 anos, alguns inauguraram as condições de possibilidade para este dia de hoje. Nesta medida, todos somos filhos de Abril. Assim, seria de esperar que a nossa praxis procurasse legitimar-se através do mesmo código de valores que nos concedeu existência política. A saber: a luta pela liberdade individual e colectiva, como condição para uma vida digna, e a garantia de um governo eleito democraticamente que salvaguarde as necessidades essenciais dos cidadãos, bem como a boa gestão da coisa pública. Mas será, de facto, assim? Será que aquilo que vemos de quatro em quatro anos pelo país fora é a luta pela manutenção do direito à liberdade individual, desde logo a mais primária, a de pensamento? E será que a arena política nacional, nos seus jogos de luta pelo poder e pela liderança, espelha o desejo de uma sociedade mais livre, igual, e fraterna? Em suma, estará o modelo capitalista neo-liberal em condições para se assumir como herdeiro do poder constituinte de Abril?

 O desdém dos meus vizinhos (e, provavelmente, também dos vossos) pela política e pelos políticos faz-me crer que não. Direi o que penso: que as estruturas de poder, primeiramente a nível local e, depois, central, não só não partilham identidade com a vocação de Abril, como estabelecem com este uma relação de monstruosidade, a da frustração perene de um herdeiro que, no íntimo de si mesmo, rejeita a figura paterna, sem o confessar com receio de perder a sua alínea no testamento. Enquanto poder constituído, os nossos órgãos de governo encaram Abril como um excesso, uma ferida aberta na capa homogénea de governamentalidade que é preciso preservar. Neste sentido, os problemas de insolvência da banca merecem mais urgência na agenda ministerial do que o flagelo do desemprego, da exclusão social, das deficiências do sistema de ensino, da precariedade da habitação social, do funcionamento selvático do mercado. Neste sentido, é politicamente uma questão secundária a da discriminação das mulheres (discriminação laboral, física, salarial, mas também ética e psicológica). Mesmo se Abril fundou um projecto de democracia assente nas necessidades reais das pessoas reais. A rotatividade política, a burocratização do poder e a profissionalização do exercício político foram as máscaras encontradas pelos “filhos de Abril” para dissimular a sua renúncia ao código de valores que possibilitou a sua existência, substituindo esse código de conduta por um exercício do poder mecanicizado e determinista. Como consequência, perante este dia de Abril, seremos sempre estrangeiros parados frente a uma porta aberta, uma porta feita para nós, mas na qual nunca poderemos entrar, justamente porque ela já se encontrava aberta quando chegámos, e da qual não nos poderemos afastar, pois não temos para onde ir. O estado de excepção  de Abril foi o que permitiu que fossemos eleitos, e rejeitamos o estado de excepção através deste cerimonial de exéquias trajado de sessão solene. A Revolução acabou por desempenhar, tal como assinalou Malroux, “o papel outrora desempenhado pela «vida eterna»: ela salva aqueles que a fazem”.

 Ora, o espírito da Revolução de Abril é intrinsecamente incompatível com uma visão política monológica, surda, encerrada em gabinetes, minada por interesses, manipuladora por conveniência, vazia de futuro. Este é, talvez, o traço fundamental da relação das nossas estruturas de poder com Abril: ele é potência sem acto, força sem movimento, simplesmente porque admitir o fulgor criativo da mensagem que hoje assinalamos, implica transformar, desde a raiz, a nossa prática enquanto representantes do povo. Todos os dias, ao abrir o jornal, renovo uma convicção: se há algo de nobre, é esse ímpeto que rompeu em Abril. Entre aquela transparente energia criadora e esta que vejo nos nossos políticos, empenhados em coagular toda a força que emerge da vida e das pessoas reais, pouco ou nada encontro em comum.

 Nas vésperas da queda da nossa primeira República, um político fazia estampar nas primeiras páginas dos jornais: o governo é uma “agência de negócios em véspera de falência fraudulenta”. Não me alegra constatar que o fantasma de Abril representa algo como uma ameaça que paira sobre a cabeça das nossas estruturas políticas de poder, um ruído incessante que vem do fundo, um desconforto instigado pela pedra-cravo no sapato dos nossos políticos, descartada tão depressa quanto os próprios sapatos apertados, ao chegar a casa. Talvez essa pedra no sapato seja a herança que nos coube na história. Uma herança sem testamento, um tesouro sem nome que aguarda, mudo, pelo seu lugar no palco da vida, a assustar e desafiar cada um de nós na sua nudez de coisa indómita.   

 Durante os últimos anos da Resistência francesa, o poeta René Char escreveu num livro de notas: “Em cada refeição que tomamos juntos, a liberdade é convidada a sentar-se. A sua cadeira continua vazia, mas reservamos-lhe o lugar.”

 Viva, hoje, o 25 de Abril.