ASSUNTO: Relatório de Actividades, Relatório de Gestão e Prestação de Contas de 2009 da Câmara Municipal

Entre vagas e tormentas, somos chamados a reflectir sobre o exercício de gestão da nossa nau pública. E, porque estamos a falar da Cidade dos Homens, cabe aqui uma reflexão crítica séria e empenhada acerca das decisões tomadas por este executivo no ano de 2009, a que se reportam os relatórios.

Verificamos que a taxa de execução da despesa ronda apenas metade do orçamento – 51,42% – o que vem dar razão à nossa denúncia dos orçamentos virtuais. Como na peça de teatro, esta Câmara vem-nos habituando a uma espécie de Falar Verdade a Mentir na hora de realizar planos, para depois, isto é, agora, dizer que era um orçamento virtual, que era um plano de intenções, ou seja, reconhecer que o tempo é de vacas magras... Mesmo apesar do gradual aumento do montante de receitas, desde 2006. Contudo, esta receita provém essencialmente de impostos directos, ou seja, directamente do bolso dos cidadãos, representando 66,86% das receitas próprias, 42,84% das receitas correntes e 29,75% das receitas totais.

Mas o que merece o nosso espanto é encontrar, mau grado os baixíssimos níveis de execução do Plano Plurianual de Investimentos (PPI), uma surpreendente taxa de 56,7% no departamento do Turismo, em “Outras Funções Sociais” (p. 24 do Relatório de Gestão). Mais surpreendente ainda quando confrontada com os 15,54% dispensados à Acção Social. E isto, meus senhores, diz muito da forma de se fazer política no nosso Concelho.
Consideremos o documento, nele mesmo e nas suas partes. Na área da rede social, dispositivos de solidariedade, integração social, intervenção directa junto de grupos de risco e dinamização sénior, interpretamos correctamente os esforços assinaláveis levados a cabo, e que merecem desenvolvimento. Contudo, não podemos deixar de observar, tomados no seu conjunto, carecem de uma estruturação sistematizante e de um enfoque que as integre na vida das comunidades, o que não só faz remeter os projectos para a invisibilidade, desperdiçando assim o eventual benefício de sinergias resultantes da adesão generalizada da população, como ameaça assumir uma configuração de “patchwork”, ou um difuso aglomerado de medidas dispersas e descontínuas.

No domínio da informatização e modernização tecnológica, assumimos que a câmara continua a ignorar alegremente a recomendação da CDU quanto à implementação de software livre e gratuito, persistindo em despender avultadas verbas para licenças de uso de software, e outro tanto em aquisição de programas de controlo de SPAM e vírus da rede, quando os sistemas operativos livres (como o Linux) e de utilização compreensiva (como o Ubuntu, do qual iremos deixar com a mesa alguns exemplares, para posterior envio aos técnicos responsáveis pelo parque informático) não apresentam, sequer, a possibilidade de recepção de vírus, o que significa que a sua adopção representaria uma dupla mais-valia para as finanças camarárias. A isto vem somar-se a possibilidade de potenciação de trabalho de programação desenvolvido localmente e por programadores dos nossos institutos superiores e escolas profissionais na adaptação do sistema operativo de código aberto às necessidades da gestão local, traduzida na criação de um valor acrescentado à base de um material de acesso livre e trabalhado com “prata da casa”.

A verdade é que, apesar de tanta preocupação com a publicitação dos dados da Câmara Municipal, esta Assembleia Municipal continua a não ter uma página para disponibilizar informação aos cidadãos. A edição da Revista Municipal (que nunca mais foi publicada depois da nossa queixa à ERC) gastou mais do que esta Assembleia ao longo de quatro anos.

Quanto à rubrica “Planeamento e Urbanismo”, facilmente se percebe a ausência de um plano integrado de requalificação patrimonial. Em face do fascínio que perecem exercer sobre esta matéria os ventos da informatização e disponibilização de dados online, por vezes não se percebendo claramente onde começa a salvaguarda da privacidade e reserva de informação e onde termina o domínio público, ameaçando fazer resvalar esta dinâmica para uma política esquizofrénica do “todos somos polícias dos nossos vizinhos”, perdeu-se uma visão das necessidades imediatas da população. Apontamos a lacuna de um projecto de requalificação habitacional do centro histórico, acompanhada por políticas de incentivo à fixação e rejuvenescimento do coração do Concelho. Também do papel parecem não sair os dispositivos de acessibilidade aos edifícios públicos. E pensamos aqui em todos os cidadãos com necessidades especiais, entre os quais os portadores de deficiência, mas também a crescente população de idosos, para os quais os nossos espaços urbanos são corridas de obstáculos. Desde logo, a começar pelo Hospital. E, enquanto sanjoanense, não posso deixar de referir que nas terra dos ciclistas não há qualquer preocupação especial para com os ciclistas, desde a falta de iluminação à ostensividade do estacionamento nas bermas de estrada (a Avenida Francisco Sá-Carneiro é um longo ponto negro), já para não referir a inexistência de ciclovias.

Mas não podemos deixar em branco o tema da mobilidade urbana concelhia, intra e inter- concelhia. Apesar da alteração dos horários do Transfeira, continuamos sem uma rede integrada de transportes públicos, quando municípios com menos possibilidades já contam com redes em coroa estruturadas a servir as populações. O estatuto periférico da maioria das freguesias agrava-se com o isolamento, particularmente incisivo nas faixas etárias seniores e nos jovens. O comércio atrofia com a falta de ventilação de transeuntes, e o sector terciário definha lentamente em freguesias de ruralidade crescente.

 Dificilmente podemos falar em qualidade de vida nestas condições, quando é preciso ir de carro para todo o lado. E aí começa outro problema. As estradas do concelho, ancestralmente deficientes na sua construção, desfiguradas por crostas de asfalto e remendos irregulares, continuam a configurar um sério problema, como fica provado pelo aumento de acidentes na rede viária municipal (p. 228), a exigir do erário público um esforço paliativo, com o qual estamos a pagar, e continuaremos, a falta de uma política viária responsável e sustentada, baseada numa definição hierarquizada de tipologias de vias. Aproveitamos para anunciar aqui a breve apresentação de um requerimento para solicitar do executivo a convocação do Conselho Municipal de Segurança, tendo em conta a proximidade do Imaginarius.

Mas o rebate de consciência desta Câmara é nítido quando chegamos ao domínio do Saneamento. Curiosamente, parte da formulação resulta de um já costumeiro copy-paste de relatórios anteriores. E se no Orçamento para 2008 se lia que “no início de 2008 verificar-seá a entrada em funcionamento do sistema de saneamento básico das Bacias de Rio Maior, Silvalde, Beire e Antuã”, aliás, lendo-se no Relatório de 2007 que nesse ano se concluíra o interceptor da Bacia de Aldriz e a reabilitação dos interceptores de Rio Maior, Silvalde e Beire, e referindo já o Relatório de 2008, curiosamente, que se havia concluído o interceptor da Bacia de Aldriz e a reabilitação dos interceptores de Rio Maior, Silvalde e Beire, sabemos agora, segundo consta da página 204 deste Relatório de Actividades de 2009, que entraram em pleno funcionamento as bacias de Rio Maior, Silvalde e Beire, mas também, honra seja feita , Ul/Antuã, Remolha e parte de Fiães e Lourosa.

Em 2007 prometiam que 70% do saneamento estaria concluído em 3 anos. Hoje, lemos nas páginas deste relatório, 50% do território coberto com saneamento de águas residuais. E isto dispensa mais comentários.

A recolha de lixo no Concelho continua a ser vergonhosa. O que marcou o mandato anterior foi a redução da recolha de lixo, que, sem ser acompanhada por politicas de educação ambiental, proporcionou a acumulação de lixo nas ruas, configurando, em algumas freguesias, situações críticas de saúde pública e insalubridade. Insistimos, portanto, no apelo ao estímulo da reciclagem e recolha selectiva casa a casa.

Na sector da Educação, à margem dos floreados patentes no relatório, os contentores modulares continuam a atravancar os recreios das escolas, e o respectivo aluguer a onerar as despesas, enquanto gerações de crianças levarão na memória o contentor pré-fabricado onde fizeram todo o primeiro ciclo, e ao qual foram habituados a chamar “Escola”.

Sem embargo, gostaríamos de sublinhar a nota positiva que nos merece o esforço de qualificação e reconhecimento das bibliotecas escolares do concelho, havendo, porém, ainda muito a fazer, nomeadamente no que respeita à integração responsável das políticas educativas num plano local de valorização cultural, artístico e etnográfico.

E isto leva-nos àquela que era, até há não muito tempo, a menina dos olhos da nossa Câmara. “O norte tem que se assumir como zona de indústrias criativas e eventos”, diz o nosso Presidente da República. Pois diria eu que por cá é mais ventos e brisas, e indústrias paliativas, de quando em vez. Nada aqui permanece. Só festas de fogo-fátuo que, na manhã seguinte, deixam tudo como estava antes.

É preciso cortar no pão e circo para começar a (re)pensar a cultura, na verdadeira e única acepção da palavra: pensar uma cultura no espaço e no tempo. Criar lugares que permaneçam, deixar legado. Começando por repensar a definição de “evento de referência”, que inunda as páginas desta secção. Porque a verdade é que um evento pode ser de refeência por ser abundantemente citado nas páginas de um tablóide de terceira água, ou nos programas da tarde da TVI. Mas que referência queremos, realmente, construir para o nosso Concelho? Permitam-me que diga que, ao contrário do que muitos querem fazer crer, os chamados “eventos de referência” do nosso Concelho não passam, em boa verdade, de referências a eventos. E que lá fora não deixam mais vestígios do que os que deixam entre nós. É necessário e urgente potenciar um verdadeiro trabalho de incentivo cultural. Aquando do lançamento da, essa sim, obra de referência em investigação da autoria do Professor Dr. Pedro Vilas Boas Tavares sobre os Lóios em Terras de Santa Maria, quem esteve presente, como eu estive, testemunhou o repto lançado pelo investigador da Universidade do Porto à dinamização de um trabalho de exploração dos arquivos, investigação patrimonial divulgação artística, histórica e cultural. Essa deverá ser a verdadeira aposta numa cultura de referência, numa cultura de fomento, se quisermos, mas, sobretudo, algo que singre e permaneça aqui, em nós.

Neste âmbito, não queremos deixar de destacar o contributo edificante da orquestra e banda sinfónica de jovens de Santa Maria da Feira, nomeadamente na prossecução do princípio fundador de “democratizar o acesso aos bens culturais potencializando a música como manifestação de arte e cultura”, como vem exposto neste relatório. Consideramos que constituirá a vários títulos uma mais-valia para o Concelho a articulação deste projecto com as actividades escolares complementares.

Mas merece igualmente destaque o contributo do Rock.VFR para a projecção de colectivos musicais locais. Não deixando, porém, de assinalar a lamentável carência de uma sala de concertos adequada (que, já agora, faz o Festival Para Gente Sentada converter-se numa espécie de festival para gente mal sentada e com dores nos costados), bem como de um parque de estacionamento, o que se torna óbvio no estado caótico de transito na cidade nas noites de espectáculos. O desleixo do Executivo neste particular fica claro neste Relatório. O Cineteatro António Lamoso, que tinha um orçamento de 3000 euros, gastou... 106 euros! Sem investimento efectivo nas infraestruturas de âmbito cultural não há “eventos de referência”, por maior que seja a boa-vontade.

Antes de terminar, apraz-nos notar o aumento do número de leitores deste Biblioteca Municipal. Mas há ainda um longo caminho a percorrer: a Biblioteca deve agora ir ter com aqueles que ainda não a vão habitando.

Em síntese, consideramos que, num contexto de fortes constrangimentos, este relatório não reflecte os rasgos estratégicos exigidos pela situação actual. Em vez disso, limita-se, na sua generalidade, a reproduzir a política do fortuito e dispendioso, das fulgurações de uma noite que bloqueiam a agilidade financeira do Município ano após ano.

Aqui deixamos, para terminar, o nosso desejo de que este seja o último de muitos, e que, de agora a um ano, estejamos a reflectir sobre um relatório de coisas que ficam. Porque, caríssimos senhores, apenas através do tempo e com o tempo pode o tempo ser transcendido. E isso, é aquilo em que todos nos devemos empenhar.