“Os mortos não os deixamos

para trás abandonados

fazemos deles bandeiras

guias e mestres soldados

do combate que travamos.”

Poema de Joaquim Namorado, do qual Fernando Lopes-Graça fez uma das suas «Canções Heróicas».

Pedro AlmeidaNa manhã de 4 de Julho de 1942 entrava no consultório do Dr. Ferreira Soares um casal. Ela dava-se como grávida.

António Carlos de Carvalho Ferreira Soares nasceu em Fevereiro de 1903, em Viana do Castelo. Praticante das artes da pesca à linha e das armadilhas aos pardais, ligou-se desde cedo às paisagens tranquilas da região da Ria de Aveiro. Estudou Medicina na Universidade do Porto e foi nessa cidade que cultivou o espírito humanista que declarava nas páginas da Seara Nova.

Os agentes da PVDE alegariam depois legítima defesa. Uma rajada de metralhadora – catorze balas falharam o alvo. Naquele tempo de selvajaria política matava-se um homem quando ele era bom. E o Dr. Ferreira Soares era um homem bom.

Este médico por formação académica e humanista por sensibilidade, revelava os seus ideais, nas páginas da Seara Nova, em críticas e contos assinados apenas por António Carlos, nome literário que adoptara.

Confrontado com a barbárie da ditadura fascista de Salazar, Ferreira Soares, homem de ideias claras e firme determinação, adere ao Partido Comunista Português, rumando à esquerda, “para mais perto do possível convívio e organização das massas populares”, como afirmou em carta a Câmara Reys (Seara Nova, n.º 1545, Julho de 74), na esteira de Miguéis, Manuel Mendes, Cunhal e Salema, segundo as suas próprias palavras.

Tombou o corpo do médico comunista; caíram lágrimas de raiva e dor. Catorze balas falharam o alvo. “A morte saiu à rua num dia assim”.

Aliando a actividade revolucionária ao trabalho clínico, amado e respeitado por todos, desempenhou um importante papel na unidade antifascista e no alargamento da influência do PCP, bandeira da liberdade colectiva erguida pela ternura de cada mão calejada. Conviveu apaixonadamente com os problemas quotidianos de cada ser humano, integrando-os sempre na conjuntura política e social.

Esta intensa actividade e determinação não passara despercebida aos olhos da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, antecessora da PIDE), que há muito o mantinha na sua mira. É assim que, em 1936, o médico comunista se vê obrigado a mergulhar numa semi-clandestinidade, refugiando-se em Nogueira da Regedoura.

Ferreira Soares preparava-se para sair de casa, tinha já sido avisado da proximidade da polícia. Contudo, não lhe pareceu correcto deixar de atender os pacientes que o aguardavam. O falso casal que pede ajuda não eram senão dois homens, um dos quais fazendo-se passar por mulher. A irmã estava com ele no consultório, tendo escapado às balas por pouco. Na casa onde vivia ainda hoje se vêem os sinais da rajada de metralhadora.

Cerca de seis anos aí viveu o clínico-militante escondido entre o povo, que o protegia e avisava dos mínimos movimentos suspeitos de estranhos na área. A força da solidariedade popular sobrepunha-se ao medo que circulava nas veias de um país amordaçado. Aí, entre o povo de Nogueira, o homem perseguido encontrou a companheira de quem teve dois filhos.

Era alegre. Ria às gargalhadas – principalmente do poder - tocava viola e cantava nas romarias. Os seus escritos traduzem a convicção firme de quem se converteu à causa do Povo, da Liberdade, da Justiça, uns dirigidos ao grupo da Seara Nova, outros lidos a gente que de letras nada sabia, no Ateneu de Nogueira da Regedoura. Uns e outros entendiam, porque é entendido quem entende.

Os esbirros salazaristas vinham apertando o cerco ao intelectual e activista. É assim que, na manhã de 4 de Julho de 1942, é armada a diabólica cilada. Uma falsa doente acompanhada de um homem vão ao consultório que mantinha em casa. E foram 14 as balas de pistola metralhadora desfechadas à queima-roupa. Ceifaram-lhe a vida, cerca das 11 horas da manhã. Transportado pela PVDE à Casa de Saúde do Dr. Gomes de Almeida, em Espinho, «o médico dos pobres», como era chamado, chegou já cadáver.

Vilmente assassinado, António Carlos de Carvalho Ferreira Soares, médico, humanista, etnógrafo, crítico, contista e destacado membro do Comité Regional do Douro do Partido Comunista Português, ergue-se como justo exemplo de sacrifício e luta, de despojamento e dignidade.

O PCP, desde a funesta data da sua morte, organiza romagens à campa onde jaz e procura manter viva a sua memória.

Vivemos em tempo de sucessivas tentativas de branqueamento do fascismo na nossa memória colectiva. Vivemos em tempo em que alguns procuram a todo o custo consertar a cadeira donde caiu o ditador, que foi trono de onde partiu a ordem para calar, perseguir, prender, torturar e matar desumanamente. Apesar de terem partido os “bandos de chacais”, há quem queira ressuscitar o “avô cavernoso”. Porém... «Os velhos tiranos de há mil anos morrem como tu», cantava Zeca.

Ferreira Soares trazia consigo a chama da ideia que consumia a crosta bruta da opressão salazarista. Dava a palavra e o braço a quem não lutava sozinho.

Tombou o homem, mas o seu ideal de uma sociedade mais justa, livre da exploração do homem pelo homem, baseada na igualdade e na democracia permanece firme na consciência de todos nós.

Ferreira Soares ergueu, clandestino, na noite do fascismo, a convicção de um novo dia, um novo sol nascido das vozes do povo como um hino à liberdade. Hoje, nós, Filhos da Madrugada, continuamos a luta interrompida deste homem pela construção da cidade sem muros nem ameias.

É nossa a sua luta pela igualdade em cada rosto, um amigo em cada esquina, pelo Portugal da fraternidade.

Ferreira Soares, formiga no carreiro em sentido contrário, diz-nos ainda hoje «Mudem de rumo, mudem de rumo!». A sua luta continua.

“E ele, o povo de Nogueira e de largos arredores, que há-de voltar a fazer coro com o médico comunista que vai à romaria da Senhora da Saúde. Com a viola ramaldeira, a cantar a Rosa Tirana. E com um cravo atrás da orelha”*.

 Pedro Almeida

 

*Escreve a família do Dr. Ferreira Soares, em carta datada de Junho de 1992