Ex.mos Snrs,

Contam que, certo dia, cá passara pela primeira vez o comboio a vapor. Falava-se que el-Rey lá vinha dentro. Corria o ano de 1908. Os carris contorciam-se tantas vezes nas curvas do percurso que lhe chamavam já “Linha do vale das voltas”.

Voltaria à gaveta o xaile sem emoção maior não fosse ter-se dado o caso de a nossa gente, de sangue na guelra, ter gravado (esborrachado?) na história o nome pelo qual (estavam longe de o saber!) ficariam conhecidos os seus netos, e os filhos dos netos: malapeiros. Naquela tarde de Outubro a rapaziada apanha a fruta que o Outono atira das árvores. Ouvem zunir os carris. Depois vem uma chaminé fumarenta. A locomotiva chega ao quilómetro quatorze. Saltam da trincheira. Entre as gargalhadas rebentam malápios contra as janelas das carruagens.

O Vouguinha está hoje como ontem. Melhor: está velho e gasto, como os trapos.

Ainda se pode observar a antiga toma de água para abastecer as locomotivas a vapor. Todos os anos milhares de malapeiros fazem as pazes com a “máquina de ferro” e embarcam rumo aos seus destinos. Mas começam a habituar-se a deixar de ver passar amiúde o “seu combóio”. A diminuição da frequência e a alteração dos horários tornam impossível para quem trabalha conciliá-los com os seus. O que a gente precisa não é de uma linha histórica turística e nostálgica, para chegar ao verão e inglês ver, uma janela para o passado: o que todos nós precisamos é que os responsáveis assumam a sua missão no âmbito dos transportes públicos, pela reabilitação da linha do Vale do Vouga: existem pessoas para além dos números com que se prepara o terreno para a asfixia total do Vouguinha – os estudantes que todos os dias o utilizam, os residentes em Espinho e São João da Madeira que a automotora traz para os locais de trabalho no nosso concelho (pensemos, por exemplo, no apeadeiro do Cavaco, que quotidianamente se enche de operários daquela zona industrial), os reformados, que, privados do seu comboio, ficariam isolados nas suas localidades, e as suas localidades isoladas com eles, por ausência de alternativas em transportes públicos. Mas nada disto parece contar.

A REFER anunciou recentemente um investimento no sentido de extinguir as passagens-de-nível e reduzir os níveis de sinistralidade nesta linha, responsável por 40% dos acidentes que anualmente se registam nas linhas, em Portugal. Neste âmbito, a necessidade de cooperação com as autarquias surge essencial, mas o executivo municipal não parece estar para aí virado. É de lamentar, e essa não será uma política com bom futuro. O caminho só pode ser outro, e conhecendo-se que os municípios, em número mínimo de sete, se podem associar para efeitos de licenciamento enquanto operadores, era desejável que se abrissem novos horizontes para a dinamização e utilização da ferrovia... O incentivo à utilização de transportes públicos deve ser uma linha de acção de primeira importância, complementada pelo ajuste dos trajectos de transportes colectivos rodoviários, visando a articulação de serviços. A defesa do património passa pela utilização.

A existência de desequilíbrios regionais, mercê das condições geográficas e da distribuição das actividades da população, é uma realidade em alguns dos pontos do trajecto da linha do Vale do Vouga. O desenvolvimento desta via de comunicação contribui poderosamente para a dinamização das várias freguesias em contacto, podendo motivar, se devidamente adaptada aos nossos dias, o crescimento de novos pólos de irradiação de serviços e bens, inovação e promoção social e cultural das populações. Como compreender que a autarquia feirense não inscreva a reabilitação do Vouguinha como prioridade para efeitos de comparticipação comunitária? Por razões de vária ordem, os governantes em Portugal nunca tiveram pelo caminho de ferro a devida e merecida atenção. No nosso concelho, ele permanece estático e obsoleto, mais parecendo dum país do terceiro mundo do que de uma região que se vangloria do nível de poder de compra, cimeiro no plano nacional. Mas as luzes da estatística não iluminam a realidade das populações: não é mérito que os detentores dos monopólios industriais engordem os números, o significativo é a forma como os responsáveis locais pugnam pela defesa dos interesses da população e a melhoria da qualidade de vida. E aqui o Sol, quando nasce, não é para todos...

Condenar à extinção uma linha porque presta um serviço ineficaz é uma irreflexão reveladora de uma postura facilitista e de ausência de consciência social. Os cidadãos eleitores do Concelho de Santa Maria da Feira são os mesmos que utilizam regularmente o Vouguinha. A população julgará o desempenho dos autarcas locais nesta questão, que não se pode dissociar de todos os outros problemas que se enquadram no âmbito económico ou social, porque os transportes são alavancas do progresso e desenvolvimento dos demais domínios. Nem só o lucro financeiro justifica o caminho de ferro.
É imperioso recordar as inúmeras vantagens que este tipo de transporte ferroviário oferece, para além do custo, que faz dele o “transporte dos pobres”, uma mais valia para o ambiente, a baixíssima sinistralidade, a durabilidade e resistência superiores, a capacidade de transporte imbatível, a velocidade que, uma vez reabilitado, pode atingir, são factores que nenhum responsável pode subestimar. O futuro imediato da Linha do Vale do Vouga não deve ser outro senão acompanhar o crescimento do nosso concelho e dos concelhos vizinhos, aproximando as várias localidades, reduzindo as assimetrias regionais, articulação esta que requer que se proceda à definição de uma estratégia para a Linha, orientada no sentido da renovação das estruturas existentes.

Por tudo isto, Ex.mos Snrs.  responsáveis pela autarquia feirense, daqui vos envio este pedido: se o falado metropolitano cá passar, mande-o passar devagar, para a gente lhe acertar com uns malápios malapeiros.

Respeitosamente,

Pedro Almeida