Ao avô cavernoso quem viu a tonsura?

E a tenda dos milagres e a privada?

Na tenda que foi nítida conjura

As flores de malva murcham devagar, devagar

Até que se ouvem gritos, matinadas.

 

José Afonso

 

 

Em tempos recentes, uma velha visão do exercício do poder parece insinuar-se de novo na vida pública: a mesma que encerra o adágio “o que arde cura”, tentando fazer acreditar que os milhões de trabalhadores, precários, reformados e desempregados virão, algum dia, a beneficiar da sangria de que estão hoje a ser vítimas. Esta concepção política, que o actual governo de direita assume como credo, decorre de uma estratégia de manutenção do status quo, através do aprofundamento da exploração e da degradação das condições de vida da maioria da população. Com efeito, aquilo a que o governo chama “austeridade” não é mais do que a transferência dos rendimentos do trabalho para o capital financeiro e de risco: os rendimentos que estão a ser roubados aos trabalhadores (quer seja por via do confisco dos subsídios, quer seja através do congelamento de salários ou do aumento dos impostos) são canalizados, pelo Governo, para as instituições bancárias internacionais (como o Banco Central Europeu), que, posteriormente, o redistribuem para aquilo a que chamam “as economias nacionais”, mas que não são, afinal, senão os grandes grupos bancários implantados em cada país, que, por sua vez, irão utilizar essas verbas para especulação nas bolsas de valores e empréstimos com taxas de juros dezenas de vezes superiores àquelas a que o receberam do BCE. Assim, é correcto afirmar-se que o sistema do capital, na sua verdadeira acepção, nunca funcionou tão bem quanto hoje: o Estado assume o seu papel de fantoche da banca, cumprindo a função de cobrador de impostos, que irá utilizar para “dar confiança aos mercados”. Isto torna-se demasiado evidente quando reparamos que o Banco Central Europeu está há cinco anos a salvar a banca e não hesita em empenhar biliões de euros num sector que não ajuda ao crescimento económico, enquanto regateia ao tostão os empréstimos para países do euro. E convencionou-se chamar a isto “austeridade”. Aqueles que a defendem, vivem o capitalismo na sua deriva especulativa como natural. Todos os argumentos destinados a justificar este estado de excepção permanente não passam de manobras de conservação e acentuação do fosso social.

O mais estranho dentre eles é a justificação das políticas de empobrecimento e desrulamentação do emprego. Os direitos laborais estabeleceram a cidadania do indivíduo dentro da empresa. Eles vieram estender ao espaço da empresa, da fábrica, do escritório, uma base de igualdade entre cidadãos livres e iguais. No entanto, querem agora fazer acreditar que são eles, os direitos, os responsáveis pela crise do sistema do capital. É fácil demonstrar quão falso isto é: em Portugal, a estrutura salarial (no sector privado) não excede os 20% dos custos de produção. E foram justamente os sectores que apostaram em mão-de-obra barata os que mais dificuldades tiveram com a globalização. Num país onde as exportações representam ? do PIB, reduzir salários é a mais absurda das medidas, capaz de levar a uma quebra de produção e consumo sem precedentes na história recente.

O que é curioso, neste modelo económico e social, é que o seu sucesso está inteiramente dependente de uma premissa que, além de falsa, é indisfarçavelmente ingénua, e foi usada não poucas vezes contra a “utopia comunista”: o princípio geral da bondade do homem. Ao visar a flexibilidade sem restrições, consubstanciada no despedimento fácil, barato e inconsequente, os defensores desta política apressam-se a acrescentar: “porque assim é mais fácil uma empresa contratar, e gera-se emprego”. Infelizmente, todos sabemos como isto é falso: porque já ninguém acredita na “bondade” e na “graça” do capital, a realidade é que este modelo produz uma habituação das empresas à precariedade, com os falsos recibos verde e a rotação de estagiários como vícios sem fim à vista. Assim, o desemprego, em rigor, não é apenas um “efeito colateral” da austeridade: ele é a sua razão de ser, enquanto instrumento de engenharia financeira para reduzir brutalmente os custos do trabalho, produzindo uma simulação de desvalorização da moeda. Por mais que os membros deste governo de direita digam, não podem esconder que o desemprego, com o drama social e humano que representa, é uma condição essencial ao cumprimento do seu programa abjecto de radical liberalização da economia. Mas isso, eles não se atrevem a confessar. Querem que Portugal se torne num país com ordenados ao nível de Marrocos e preços ao nível de Bruxelas. Em consequência disso, hoje, milhões de jovens só podem ter como projecto de vida sobreviver. O dilema verdadeiro não é cumprir ou não cumprir, porque os custos de cumprir já ultrapassaram os piores cenários. O dilema é continuar este caminho ou mudar, enquanto é tempo. E o nosso tempo esgota-se, face aos austeritarismo neo-fascista de fachada puritana.