Senhor Presidente da Assembleia da Municipal,

Senhor Presidente e demais elementos da Câmara Municipal,

Senhoras e Senhores eleitos,

Estimadas e estimados convidados,

Minhas Senhoras e meus Senhores,

 

Quarenta anos volvidos desde o 25 de abril de 1974 importa recordar e refletir sobre a situação de Portugal no pretérito desse dia. Assim como importa refletir sobre o presságio de João Abel Manta que já em 1975 anunciava:

“fascistas mal enterrados começam a botar flor”.

 

Hoje não há dúvida nenhuma de que o presságio se concretizou. Concretizou-se essencialmente por três razões que abarcam em sim muitas outras:

· Uma é a crise financeira que em função do desespero que causa a muitos portugueses leva-os para extremismos pouco recomendáveis;

· Outra será os fascistas que com a Revolução se viram desprovidos do seu poder e tentam agora ajustar contas com os frutos da Revolução;

· E a terceira será os saudosistas “velhos do Restelo” que têm opinião de tudo, mas que nunca a fundamentam com factos reais.

No respeitante à crise financeira, à qual também se pode chamar de crise capitalista, nada vou mencionar, uma vez que esta é cíclica, típica do capitalismo e sobre a qual já tudo foi dito.

Porém, sobre as outras duas razões que mencionei farei uma pequena reflexão, até porque quem de nós nunca ouviu a expressão “no tempo da outa Senhora é que era!”. É verdade, este tipo de expressões sem veracidade são comumente pronunciadas por fascistas ressabiados e pelos “velhos do Restelo” que vivem infelizes com a felicidade dos outros. Pois então, ora vejamos como era boa a “outra Senhora” recordando que no tempo do Estado Novo:

No trabalho

· Em 1974, apenas 25% dos trabalhadores eram mulheres e estas ganhavam menos cerca de 40% que os homens;

· A lei do contrato individual do trabalho permitia que o marido pudesse proibir a mulher de trabalhar fora de casa;

· As mulheres não tinham acesso às carreiras de magistratura, diplomáticas, militar e polícia (exceção às enfermeiras paraquedistas);

· Certas profissões (por ex., enfermeira, hospedeira do ar) implicavam a limitação de direitos, como o direito de casar.

Na família

· O único modelo de família aceite era o resultante do contrato de casamento;

· A idade do casamento era 16 anos para o homem e 14 anos para a mulher;

· A mulher, face ao Código Civil, podia ser repudiada pelo marido no caso de não ser virgem na altura do casamento;

· O casamento católico era indissolúvel (os casais não se podiam divorciar);

· O Código Civil determinava que “pertence à mulher durante a vida em comum, o governo doméstico”;

· Mães solteiras não tinham qualquer proteção legal;

· O marido tinha o direito de abrir a correspondência da mulher;

· Até 1969, a mulher não podia viajar para o estrangeiro sem autorização do marido.

Saúde Sexual e Reprodutiva

· Cerca de 43% dos partos ocorriam em casa, 17% dos quais sem assistência médica; muitos distritos não tinham maternidade.

Segurança Social

· Não existia pensão social, nem subsídio de desemprego;

Infraestruturas e equipamentos sociais

 

  • · Em 1973 havia 16 creches oficiais e a totalidade, incluindo as particulares, que cobravam elevadas mensalidades, abrangia apenas 0,8% das crianças até aos 3 anos de idade;

 

· Não existiam escolas pré-primárias públicas e as privadas cobriam apenas 35% das crianças dos 3 aos 6 anos de idade;

· Quase 50% das casas não tinha água canalizada e mais de metade não dispunha de eletricidade.

Esta longa lista poderia ser bem maior se não estivéssemos limitados pelo tempo da intervenção. Porque caso não tivéssemos esta limitação eu poderia referir ainda que a taxa de analfabetismo era de 33,6%, que a taxa de mortalidade infantil era de 37,9% e que a taxa de mortalidade materna era de 73,4 por 100 mil nados vivos (o que contrasta com os 2,3 de 2000), que tínhamos guerra, censura e tortura.

Veja-se bem a diferença do Portugal da “outra Senhora” para o Portugal da Democracia.

No outro Portugal, atrever-me-ia a dizer que desta plateia que hoje aqui está, um terço não saberia ler nem escrever, as senhoras não teriam cargos políticos, dos senhores, pelo ativismo que têm, grande parte estariam exilados ou em prisões, os mais jovens ou estariam na guerra ou emigrados para fugir da miséria e da morte, os mais velhos, acima dos 70 anos, estariam, pela estatística, mortos.

Como era boa a “outra senhora”, ainda afirmam alguns!

Não há factos que justifiquem tamanha mentira. Vêm eles com a história de que na altura Portugal tinha um crescimento económico invejável, mas nunca referem à custa de quê nem que esse crescimento não se refletia numa melhoria das condições de vida, muito pelo contrário. Vêm eles com a história da segurança, quando já todos sabemos que os dados do Regime era ficcionados e propagandísticos.

Por nos termos conseguido libertar desse Portugal cinzento devemos em todos os 25 de abril comemorar com alegria. Comemorar a Democracia, a liberdade e a paz, mas nunca devemos obliterar o Portugal que tínhamos antes. Devemos recorda-lo e refletir, para que não se volte a repetir e para que os mais jovens saibam que a democracia, liberdade e direitos não é algo eterno, é preciso defende-los todos os dias.

A Democracia nascida com a Revolução de abril veio rasgar com a mesquinhez da “outra Senhora”, trouxe-nos paz, liberdade, educação, saúde, infraestruturas, direitos, reconhecimento internacional e igualdade entre géneros.

Todavia 40 anos passados, a democracia deveria estar fortalecida e coesa. Deveria ter um futuro próspero pela frente.

Em vez disso, temos uma democracia frágil e podre.

Temos uma democracia frágil porque, uma democracia é algo que se constrói diariamente e que precisa de todos para se manter sólida. Neste sentido, os democratas têm culpa no cartório, pois deixaram os “velhos do Restelo” apoderarem-se do país novamente.

A Revolução que deve ser algo permanente e constante desviou-se da sua origem e hoje muitos de nós aclamam novamente pela liberdade! Não vivemos num totalitarismo paternalista e demagógico, mas vivemos numa ditadura do poder financeiro que controla e corrompe o poder político e que avança para o totalitarismo a olhos vistos.

Na sociedade de hoje o Homem não é o mais importante, e o único valor reconhecido é o passível de receber rating dos mercados. Para isso, contra todas as evidências, tentam incutir aos trabalhadores, aos sindicatos, aos jovens, aos artistas, aos pensionistas, aos reformados, aos desempregados e até aos doentes o ónus da culpa pelas consequências desastrosas que anos de opções neoliberais não poderiam deixar de acarretar.

A verdade é que no Portugal de hoje todos os valores e conquistas de Abril estão em causa. Desde 1976 que temos assistido a sucessivos ataques a estes valores, em reiteradas tentativas de “ajustes de contas” com a memória coletiva da liberdade e da democracia. Ataques estes que se têm intensificado na última década. É forçoso reconhecer que nunca se assistiu a um tão desavergonhado ataque à escola pública universal e gratuita, ao serviço nacional de saúde, ao poder local democrático, à dignidade do povo português, aos direitos dos trabalhadores, à liberdade e à própria democracia.

A democracia saída de abril, corrompeu-se e transformou-se num modelo inumano, delirante e insustentável, não o de Abril. Esta Europa é uma Europa impossível, uma Europa inexequível, que nega os valores de solidariedade, democracia, autodeterminação e amizade entre os povos que justificaram sempre a sua existência pacífica. Esta Europa, e este país, que vivem o capitalismo financeiro na sua deriva especulativa como natural, são a mais ameaçadora negação da realidade, a mais terrível aporia da história contemporânea, porque nos conduz a um ponto sem futuro, à rua sem saída do colapso e da aniquilação das instituições democráticas e soberanas: esta é a Europa, não da utopia, ainda que impossível, mas da mais inusitada distopia que poderíamos ter construído! Uma Europa que não sobreviverá a si mesma, se persistir em roubar aos trabalhadores os mais elementares direitos para uma vida digna.

Portugal hoje segue a linha europeia do suicídio civilizacional. Todos sabemos que a linha política seguida pelo atual poder político deixou de refletir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril configurado na Constituição, o contrato social estabelecido na Constituição da República Portuguesa foi rompido pelo poder, uma vez que as medidas e sacrifícios impostos aos cidadãos portugueses ultrapassaram os limites do suportável, pelo que se impõe reconhecer ser oportuno tomar uma posição clara contra a iniquidade, o medo e o conformismo que se instalaram já no País.

Precisamente há dois anos, nesta cerimónia mencionei a interpretação histórica que alguns historiadores fazem da nossa história mais recente, dividindo-a em períodos de 40 anos. Pois hoje atrevo-me a dizer que entrámos já num novo período, o período da reconquista de direitos. Pois o poder político que atualmente governa o nosso país configura um outro ciclo político que está contra o 25 de abril, os seus ideais e os seus valores e que tem destruído tudo quanto se construiu com o sacrifício de muitos.

Cabe a nós que estamos aqui hoje travar este rumo. É que se estamos aqui hoje a comemorar abril é porque acreditamos nesses valores, ou então estamos aqui apenas de corpo presente, cumprindo mais um ato hipócrita de cravo na lapela

Para terminar, peço desculpa ao senhor Presidente por romper o protocolo, mas vou terminar a minha intervenção com um minuto de silêncio, um minuto de homenagem a todos os que perderam a vida a lutar direta ou indiretamente pela democracia, pela liberdade que hoje nos permite ter voz.

Viva abril!