Corria o ano de 1940. O então jovem Álvaro Cunhal apresenta para exame no quinto ano jurídico da Faculdade de Direito de Lisboa uma tese a que deu o título “O Aborto – Causas e Soluções” (publicada pela Campo das Letras, Porto, 1997). Ironicamente, contava-se entre o júri o Professor Marcelo Caetano.

Há duas semanas que recebo na caixa do correio folhetos que anunciam o fim apocalíptico do “Dogma da Fé” em Portugal, se se der a heresia do “Sim”obter maioria no referendo que se avizinha, temperados por um discurso medievalista em tom de sentença dum Auto de Fé do Tribunal do Santo Ofício. Como é claro, um fenómeno de manipulação mental desta natureza nunca surge isolado, mas desempenha a função que lhe cabe, enquadrado numa frente bem mais larga, que não olha a meios para construir novos dogmas alicerçados em premissas falaciosas, que, à força de tantas vezes repetidas, soam como verdadeiras, se um homem não estiver de atalaia.

“O aborto é aceite, tolerado ou reprimido não pela sua natureza íntima e profunda, mas por razões de natureza social” - Cunhal cristalizava já naquela época em poucas palavras aquilo que hoje debates longos e inconclusivos teimam em não esclarecer. A questão que se impõe não é absolver ou apedrejar a interrupção voluntária da gravidez. O que nos calhou em herança foi a responsabilidade de escolher o caminho da ilegalidade na sombra ou da legalidade assistida. Utopias à parte: o aborto é uma realidade tão antiga como a história das sociedades. Rotulá-lo como consequência das práticas inconsequentes das gerações jovens é um grave erro histórico que dificulta a compreensão da dimensão real em que se coloca o problema. No início do século passado a prática dos “desmanchos” (quem nunca ouviu esta palavra?) contava-se entre as principais causas de morte nas mulheres. A fragilidade dos argumentos dos que sonham poder irradicar a prática do aborto através da penalização de quem o pratica assemelha-se à avestruz que, por enfiar a cabeça debaixo da areia, pensa estar a salvo dos perigos. Se não, como justificam os arautos da criminalização das mulheres o facto de, mesmo após a vitória do “Não” no referendo realizado em 1998 à IVG, os números de indícios de aborto clandestino não tenham diminuído, até pelo contrário??

O voto no “Não” nunca será um passo na direcção de uma sociedade isenta de aborto,  como ficou provado. O facto de em 2004 terem dado entrada nas Urgências dos hospitais portugueses 1426 mulheres com complicações resultantes da prática de abortos clandestinos não deixa dúvidas: a actual lei não traduz as verdadeiras causas que conduzem à interrupção da gravidez em Portugal - essas são de ordem económica e social. “A miséria é a primeira grande causa do aborto nas classes trabalhadoras: como podem elas ansiar a vinda ao mundo do produto do seu ventre, como podem desejar que a carne da sua carne venha para o sofrimento e para a dor? ”, escrevia Álvaro. Se o aborto nas classes ricas – praticado em clínicas espanholas ou inglesas – é um aborto de luxo, nas classes pobres é um aborto de necessidade. O facto é que a tomada da decisão de interromper a gravidez é um processo limite e que não tem retorno: resulta de uma decisão extrema e que não compraz a ninguém tomar. A luta pela despenalização da IVG constitui um exercício de humanitarismo que comprova o valor da vida humana em toda a dimensão da sua dignidade, recusando a inconsequência superficial de quem alardeia a defesa da vida e volta as costas à dureza trágica dos factos: todos os meses são abandonados bebés recém-nascidos em cafés, caixotes do lixo ou às portas dos super-mercados. Eis o preço que a sociedade paga pela cegueira de não conceder à mulher que suspenda a gravidez de um filho que, noutras condições, desejaria ter.

Apregoam outros que a despenalização do aborto viria suscitar um surto abortivo (não se envergonham de falar em “aumento generalizado”). Choca-me tal provocação à consciência feminina, visão redutora da dignidade e responsabilidade das mulheres que só se compreende enquanto reduto de um machismo violento e opressor que nega à mulher o mais elementar direito ao pensamento livre que conduz à auto-determinação – o aborto não é um método contraceptivo, nem as mulheres o encaram como tal.

É essencial reconhecer a dicotomia clara entre o aborto clandestino, praticado em condições de precaridade e ausência de uma higiene adequada, levado frequentemente a cabo por pessoas incompetentes, num ambiente de pavor e precipitação, e o aborto realizado por um médico, em  hospitais ou clínicas especializadas, nas condições imprescindíveis a uma intervenção ao nível do organismo feminino. A larga ofensiva que travam actualmente os sectores do costume visa justamente esbater as diferenças entre estas duas realidades cabalmente opostas, quando não tenta mesmo equipará-las, tendo em vista fazer deslizar (sem que nos apercebamos) o verdadeiro cerne da questão para o campo do emocional, recorrendo quer a imagens fora do seu contexto e que conduzem a uma interpretação aberrante dos factos, quer a deturpações ao nível da própria questão que vai estar a referendo no dia 12. Efectivamente,  o que vai estar à consideração dos portugueses no dia 11 será uma escolha dupla elementar: perante a prática do aborto clandestino, Portugal deve tomar uma atitude proibitiva (continuar o status quo, manter o aborto nos antros da clandestinidade e continuar as nossas vidas, no dia 12 de Fevereiro, como se ele não existisse mais em Portugal), ou despenalizar as mulheres que tomem a decisão de interromper a sua gravidez e colocar à disposição meios técnicos e humanos para que o possam fazer sem riscos para a sua saúde?

“O aborto é um mal. Nisto estão de acordo todos os escritores, desde os partidários da repressão feroz até aos defensores da legalização”. Porém, a verdadeira questão (que os partidários do “Não” teimam em esconder) é outra: “Se todo o aborto é um mal, o aborto clandestino é uma catástrofe”.

A tese valeu a Álvaro Cunhal a classificação final de 16 valores.

* Queira perdoar-me o Dr. Santana Lopes pelo plágio, mas não encontro luva que sirva melhor a estas linhas – faço votos para que entre o presente artigo e o livro de memórias do ex-autarca e primeiro-ministro nada haja em comum senão os dois substantivos que cito.

 

Pedro Almeida