Pedro AlmeidaRecentemente, quando me preparava para pagar uma compra numa loja vizinha, a simpática proprietária, perguntava-me, com a maior das boas vontades, como ia correndo lá o meu curso para político.

Naturalmente, expliquei que não frequento um curso na área de política, que o meu curso era Teoria da Literatura, e que a política não é profissão. Vem isto a propósito de um artigo publicado no «Público» de 3 de Abril, assinado pela Tânia Marques, com o título “Jovens longe das juventudes partidárias”. Em poucas linhas, a jornalista traça o cenário desolador da consciência política entre os jovens, recolhendo depoimentos de líderes da JSD, da JS, e do Bloco de Esquerda, cada qual fazendo o elogio da lucidez política dos seus militantes. Ilustra-se o alheamento geral da política com os anedóticos casos dos transeuntes que desconhecem o que significa ser “de esquerda” ou “de direita”, convoca-se o lugar comum das juventudes partidárias a funcionar como trampolins para cargos políticos, e polvilha-se tudo com um tom apocalíptico q.b.


É difícil negar as evidências. Quando um jovem, invocando a “identificação com as causas em que acredita”, adere à juventude política de um dos dois partidos que há trinta anos alternam no poder, ou não vê telejornais e não sai do seu apartamento na Foz há demasiado tempo, ou é masoquista. Infelizmente, as coisas nunca são tão simples. Por altura da última campanha às autarquias, recordo-me de ver, já noite, camiões de caixa aberta com dezenas de meninas de t-shirts “Alfredo Henriques” e bonés a condizer, a agitar bandeiras enquanto dançavam ao som do hino do PSD. Na sua maioria nascidas nos últimos anos da década de 80, nunca conheceram outro presidente de câmara. Na sua maioria, sabem que, nessa mesma noite, ao chegar a casa, o autoclismo enviará, talvez por via de algum riacho, para a Barrinha de Esmoriz aquilo que não causa a menor gula. Cresceram a ouvir os pais dizer raios e coriscos dos nossos políticos à hora dos telejornais. Cavaco, Soares, Guterres e Santana foram para elas (e para mim) durante muitos anos os nomes de protagonistas de anedotas. E é provável que, na manhã seguinte, para chegar até à Faculdade, tenham que apanhar a carreira à frente do Hospital às seis e meia da manhã, ou sujeitar-se aos horários enigmáticos do Vouguinha, para chegar à Estação de Espinho e apanhar comboio para o Porto ou Aveiro. Mas ainda havia muitas freguesias onde era preciso gritar “Alfredo Henriques”.

Nenhuma acredita que haverá cargos políticos para tantas jotinhas. E a verdade é que a vida num gabinete cercado de homens trinta anos mais velhos a tratar da burocracia político-partidária não é propriamente a coisa mais aliciante do mundo. Enquanto aclamavam Alfredo Henriques presidente, já na noite da vitória, e tentavam tocar-lhe no blazer quando se dirigia, depois de jantar, à sede de campanha, as colegas de curso actualizavam o facebook, preparavam-se para sair, ou viam um canal de música. (Recentemente, alguém me dizia: “ - Ao fim-de-semana vou para casa, sou de Ovar. Freguesia? Isso não sei, sei que pertence ao concelho de Ovar.”). Não há muitas razões para acreditar que as jotinhas do camião acalentavam o sonho de transformar um pouco o (seu) mundo com a eleição de Alfredo Henriques, que apenas conhecem de ver nos jornais (?) e de ter encerrado os comícios, embora algumas tenham conseguido um cumprimento ou um beijinho na campanha.

O poder vem assumindo explicitamente uma vocação de governamentalidade das consciências. Um gestor, engenheiro, construtor, arquitecto, dono de um café, são cargos tão políticos como vereador. Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és. A política deixa de ser uma entidade monolítica e localizada e dissemina-se em todas as relações sociais como uma forma de conduta prescrita, uma ortodoxia de opiniões e silêncios que, se o jovem “se portar bem”, o podem levar a algum lado. A contradição surge aqui. Trinta jovens de vilas periféricas a uma cidade periférica sobem a um camião para aclamar uma das figuras de autoridade simbólica nesta estrutura fluída de disciplina de vida. E uma jornalista escreve que os jovens se encontram cada vez mais afastados das juventudes partidárias. A relação de cada jovem com o potencial Poder (o Partido que pode ir para a câmara/para o governo, o presidente da concelhia, a estrutura...) é uma forma de subversão ortodoxa, é a relação impossível de criação de uma identidade pelo sacrifício da própria identidade: a emergência de um indivíduo-na-sociedade através da integração do interdito simbólico encarnado pela lei paterna (a figura tutelar do partido do poder), na sua dimensão protectora e, simultaneamente, obscena. É, por outras palavras, o drama de Édipo, confrontado com a ambivalência emocional do totem e do tabu no horror do incesto (a adesão contra-instintiva a um sistema de valores paternalista) e o desejo (inconfessável) de aniquilar a figura de autoridade, para poder, finalmente, substituí-la. Neste sentido, o gesto de obediência exasperada a uma estrutura política local e a inscrição incondicional num código de comportamento disciplinador é, paradoxalmente, o gesto fundador de uma contraconduta (como a geração de executivos que emerge nos anos 80).

Se estes grupos de militantes se definem por oposição aos colegas (e, nesta medida, há que reconhecer a validade do título do «Público»), algo vai verdadeiramente mal. Porque, reproduzindo os comportamentos de exclusão que estão na origem do conceito “classe política”, afirmam a sua (contra)conduta como modo de assumir uma posição invisível na ordem da governamentalidade (desde o gabinete da cave ao pelouro), e isso representa a própria negação da evolução. Nesta subtracção ao todo, algo se perde. É esse esvaziamento que melhor define a relação dos jovens com as jotaêsses e as jotaêssedês, enquanto espaços de aquisição de individualidade pelo acto de dupla negação: negação do todo social e negação da dimensão subjectiva – o que conduz à suspensão do próprio real, o real que esperava pelas meninas do camião laranja à chegada a casa, na falta de saneamento, o real que se infiltra na contradição entre a evidência de um concelho (de um país) arcaizado, de estruturas políticas fossilizadas, e a alegria das jotinhas em noite de campanha eleitoral para manter tudo na mesma. Ao longo de anos os nossos políticos esforçaram-se por passar a imagem de que já não há esquerdas nem direitas, que isso é coisa doutros tempos, que já não há ideologias, que somos todos do centro moderado, que a nova política chama-se “economia de mercado”. Esperavam agora que os filhos soubessem dizer para a câmara da televisão qual a diferença entre ser de esquerda ou ser de direita??

Esse divórcio entre o ser e o pensar (entre o cogito e o sum) cria uma fractura demasiado perigosa para continuar a ser alegremente ignorada. Essa fractura é o produto de uma ideologia construída pelos dois partidos no poder há trinta anos, um jogo de dissimulação e hipocrisia alimentado por todos nós que preferimos ser cegos a acreditar que isto vai mesmo mal e que é preciso mudar. Não ando a estudar para político. Honestamente, nem posso dizer que a política me agrade. Mas, como diria Francis Bacon, mais vale transformar a política antes que seja tarde, e ela nos transforme a nós.