Pedro Almeida

Desde há algum tempo a esta parte, algumas estruturas locais levaram a cabo um processo de sacralização do evento “Viagem Medieval”, verrinando acusações de apostasia a qualquer voz que levante uma objecção crítica de algum tipo. Porque considero que esta postura dogmática presta um péssimo serviço ao município feirense, ao bloquear novas perspectivas ou contributos para um projecto alternativo, julgo oportuno partilhar aqui algumas reflexões relativas à configuração actual desta iniciativa.

1. Sobre o pagamento de uma portagem para aceder ao centro da cidade durante a realização da “Viagem Medieval”. A pretexto do argumento nunca questionado da “auto-sustentabilidade” da iniciativa, nesta edição, e pela primeira vez, decidiu-se introduzir uma contrapartida para o acesso de visitantes ao centro da cidade da Feira. O valor representa uma despesa substancial no orçamento de uma família com dois filhos ou mais, ou que decida, como acontece amiúde, dirigir-se ao evento num grupo familiar alargado, com os avós, por exemplo, que terá que desembolsar, no primeiro caso, oito euros apenas para passear pela cidade. Do ponto de vista lógico, é um total contra-senso fazer o visitante pagar para aceder a um recinto cuja principal vocação é estimular o consumo: não faz qualquer sentido pagar para visitar tendas de venda de artesanato e bugigangas e para consumir bens alimentares que serão , por sua vez, também eles pagos. Trata-se de uma medida pouco cordial para quem nos visita, e pouco sensata para quem cobra. Mas, o que é pior, trata-se de uma facada nas costas do associativismo concelhio: ao impor um pagamento à cabeça ao visitante, a organização está a tirar às colectividades oportunidades de angariação de verbas, pela simples razão de que oito euros a menos na carteira logo no pórtico da entrada são menos oito euros em sandes ou bebidas. Fica assim gravemente ferido o argumento segundo o qual a “Viagem Medieval” cumpria uma função importante no financiamento associativo. Cada vez menos.

2. Começa a ser descaradamente desadequado incluir a “Viagem Medieval” no âmbito da acção cultural do município. Só por tacticismo político se compreende que ainda alguém defenda que se pode considerar este evento uma iniciativa cultural. A “Viagem Medieval” é, hoje, um evento de entretenimento popular. E é importante perceber que isto é uma constatação sem qualquer carga pejorativa: não há, pelo menos da minha parte, nenhuma conotação negativa associada a eventos de entretenimento. Mas é vital que isso seja publicamente reconhecido pelos responsáveis. A consequência de persistir no erro de considerá-la um projecto cultural é ficarmos despojados de um verdadeiro programa cultural para além da “Viagem Medieval”. E isso deve preocupar todos os que querem bem a este concelho.

3. Encaro com muita apreensão as consequências do actual modelo da “Viagem Medieval” para as associações concelhias de carácter cultural. Ao longo das últimas edições, assistiu-se a uma trivialização da prática da figuração, que acaba por funcionar como pretexto para tudo e mais alguma coisa, com trupes de participantes envoltos em andrajos ou usando fantasias de carnaval para poderem afirmar-se ‘participantes’ no evento. Contudo, que fique bem claro: não estou minimamente preocupado com o apelidado “rigor histórico” da coisa. Assusta-me, sim, algo bem mais sério: que os grupos culturais descaracterizem a sua vocação crítica, interventiva, cívica, para se (re)sumirem em cortejos de mascarados. O teatro e a arte dramática desaparecem à vista da figuração fácil. Salvo, é claro, raras excepções – e não posso deixar de referir aqui a excelência da participação dos grupos corais litúrgicos, cujas interpretações de música erudita se revestem de uma mais-valia cultural e artística evidente. Infelizmente, o panorama geral é dominado pela exploração comercial da nulidade: anda-se pela rua a acenar e fazer meneios, e desbarata-se assim a energia e o potencial humano das associações locais, a troco de financiamento fácil. Abre-se mão da dimensão formativa, cultural, artística e intelectual dos grupos recreativos. Estamos a assistir, de ano para ano, a uma atrofia da nossa massa associativa, e ninguém parece muito preocupado com isso. Entenda-se: não quero dizer, com isto, que só aceito uma concepção restritiva de cultura, e de cultura popular. O que quero dizer é que esta política está a impedir as nossas colectividades de desenvolverem uma dinâmica cultural plena, plural, independente, multidireccionada, livre e actuante.