Mas para meu desencanto o que era doce acabou

Tudo tomou seu lugar depois que a banda passou

E cada qual no seu canto e em cada canto uma dor

Depois da banda passar cantando coisas de amor.

 

Chico Buarque, A Banda

 

1. Um dos pilares das democracias ocidentais, reconhecido, pelo menos, desde a aprovação da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789, art. 11.º), a livre comunicação de ideias e opiniões deve ser assumida como um princípio inalienável dos Estados modernos, sob pena de deslegitimação do próprio sistema onde essa garantia é posta em questão. E é justamente graças à primazia deste princípio que os documentos que regem os aspectos éticos e deontológicos do exercício do jornalismo consagram especial atenção ao cuidado a observar na comunicação de informação, por forma a salvaguardar a imparcialidade, rigor, pluralismo e objectividade do serviço de informação: nos Princípios Internacionais da Ética Profissional no Jornalismo (princípio II, “A Consagração do Jornalista à realidade objectiva”, Paris, 1983); na Declaração de Munique (“Deveres do Jornalista”, número 1, “Respeitar a verdade, sejam quais forem as consequências que daí advenham para si próprio, e isto como consequência do direito do público a conhecer a verdade”, 1971); na Declaração de Bordéus (1954), ou no Código Deontológico dos Jornalistas (artigo 1.º, “O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público”, 1993), o dever de zelar pelo cumprimento da liberdade de expressão emana de forma clara da própria condição profissional do jornalista.

2. Foi com choque e estupefacção que me deparei, no Domingo 12 de Fevereiro e nos dias subsequentes, com a filtragem jornalística e/ou editorial de que foi objecto, na imprensa escrita, a Manifestação convocada pela CGTP-IN para Sábado, 11 de Fevereiro, e que teve lugar no Terreiro do Paço. Aceito que os critérios editoriais de cada órgão de comunicação social definam as prioridades da respectiva cobertura noticiosa. Reconheço que, não existindo imprensa escrita de carácter público em Portugal (à excepção da Imprensa Nacional-Casa da Moeda e do Diário da República, sem vocação jornalística), a lógica empresarial da imprensa de distribuição nacional dite regras de produção de informação consistentes com os propósitos de “competitividade”, “lucro” e “rentabilidade”. Admito até, no limite, que a noção de “objectividade” possa ser discutível e variar de acordo com o intérprete. Mas a falsificação da realidade, com extremos de manipulação das evidências, constitui, num Estado democrático e de Direito, um dos mais hediondos e repugnantes ataques à sociedade a quem era suposto a comunicação social servir. Um crime de honestidade intelectual que não posso tolerar, em absoluto, por ofender os mais elementares princípios de transparência e verdade sobre os quais se funda a coexistência pacífica em democracia.

3. Não está aqui em causa o número de manifestantes que estiveram presentes no Terreiro do Paço. A notícia não se justifica somente pela representatividade demográfica dos protagonistas, como bem sabem (e melhor praticam) alguns dos nossos jornalistas, habituados a escrever muito sobre muito poucos. Arménio Carlos, em nome da CGTP-IN, declarou que se encontravam no Terreiro do Paço e nas ruas e avenidas adjacentes “mais de trezentas mil pessoas”, naquela que era “a maior manifestação dos últimos trinta anos”. Pode argumentar-se que não, que seriam trezentos mil e vinte e quatro, ou que seriam afinal duzentos mil, ou cento e oitenta mil os manifestantes. É normal, esse exercício de disputa de números, e já estamos habituados – sabemos de onde vêm, por que vêm, e onde querem chegar. O que já não é normal é a imprensa submeter o seu trabalho a uma das facções em confronto, limitando-se a aderir unilateral e acriticamente aos jogos de falsificação de ordem política, resumindo o seu papel a reverberar opiniões de subvalorização da manifestação de trabalhadores. Seja qual for o número mais aproximado (e serão sempre aproximações, já que não me recordo de ver por lá “contadores oficiais”), e mesmo fazendo fé nas estimativas mais modestas, será indesmentível que esta foi uma colossal mobilização de protesto, alcançando um nível sem precedentes nos últimos anos – foram formadas quatro grandes concentrações em quatro pontos da cidade de Lisboa, correspondendo aos distritos de origem dos manifestantes, que seguiram, em marcha, pelas ruas da capital, convergindo para o Terreiro do Paço, onde foram chegando ao longo de várias horas. Seja qual for o número exacto de manifestantes, esta foi uma iniciativa de grande dimensão à escala nacional, mobilizando (inquestionavelmente) largas dezenas de milhares de pessoas. Grande demais para alguém fazer de conta que não se apercebeu, portanto. A história está repleta de revoluções que se fizeram com muito menos gente. Com manifestações bem menores do que esta já se abriram noticiários pelo mundo fora. No Terreiro do Povo, eu vi bem as proporções da multidão que aderiu à contestação. Em qualquer país, e numa situação de normalidade, um acontecimento daquelas proporções mereceria um destaque correspondente, uma cobertura jornalística capaz de dar conta do que estava a ter lugar, na justa proporção daquilo que estava a ter lugar. Em Portugal, no ano de 2012, aquela que foi, indisputavelmente a maior manifestação das últimas décadas, mereceu uma caixa de texto de segundo nível na capa do «Público» (12.02.2012), bem inferior a “292 médicos reformados voltaram a trabalhar no SNS desde há ano e meio”, e com o título “Milhares exigiram nas ruas aumento do salário mínimo”, reduzindo, de forma indisfarçavelmente ridícula, o protesto que inundou as ruas de Lisboa e o Terreiro do Paço a uma mera manifestação pelo “aumento do salário mínimo”, título este acompanhado de uma fotografia de grande plano onde surgem dois dos trezentos mil manifestantes (Carvalho da Silva e Arménio Carlos). Mereceu, no «JN» (12.02.2012), uma pequena caixa no topo da capa (“Arménio passa teste do Terreiro do Paço [!?] e exige aumento do salário mínimo”), relegando a notícia para a página 32 (!). Mereceu, no «Correio da Manhã» (12.02.2012), uma pequena caixa periférica na capa, com o título “Arménio conta 300 mil em manifestação”. Mereceu, no «i» (13.02.2012), a completa ausência de qualquer referência de primeira página. E o panorama não é diferente nas edições online dos principais jornais diários, com breves notas marcadas pela superficialidade, em alguns casos muito abaixo da zona superior das páginas, em lugares dedicados a notícias secundárias, e, quase sem excepção, rapidamente substituídas por algum “grande caso mediático”, seja lá isso o que for (morreu Whitney Houston, vitória do Benfica, frases de Alberto João Jardim sobre Merkel, etc.). Mas o que são trezentos mil portugueses em luta na rua, perante a substituição do treinador do Sporting?  

4. Como já foi dito, no Governo que temos hoje, o Ministro das Finanças dá mais ouvidos ao sussuro do Ministro alemão do que à voz de trezentos mil portugueses que saíram às ruas para expressar indignação. Daqui se vê como a cadeia de aprendizagem dos vícios do poder tem funcionado eficazmente, e os meios de comunicação se comportaram aqui como alunos bem ensinados: o mutismo revelado, o despudor com que aplicaram filtros a este acontecimento de proporções históricas, a habilidade demonstrada em retorcer os dados, manipular engenhosamente os factos e “redifinir prioridades e hierarquias”, numa espécie de embriaguez colectiva, não deixam margem para dúvida – estamos perante a prova consumada de órgãos de informação perigosamente parciais, sem problemas de consciência ou pruridos de natureza ética quando chega a hora de branquear a realidade. Como consequência, rompe-se assim em definitivo o vínculo de confiança entre os cidadãos e os meios de informação, sem que, doravante, possamos estar certos de que aquilo que é notícia é, de facto, representativo da realidade objectivamente comprovável. Esta situação, a evocar os piores dias do antigo regime, deve suscitar uma reflexão generalizada acerca da credibilidade e seriedade da imprensa em Portugal. Quando se ultrapassam certos limites ­–  e aqui foram ultrapassados todos os limites – já não é dado que continuemos a viver em democracia.