Pedro Almeida

Olha que a vida não, não é nem deve ser

como um castigo que tu terás que viver.

António Variações

Não é frequente ter-se a oportunidade de assistir ao vivo à escrita da História. Por norma, chegamos sempre atrasados à página de um livro de história, e a percepção que detemos das grandes mudanças de ciclos quase nunca é comparável com a escala de uma vida humana. É justamente por isso que não devemos ignorar que atravessamos, hoje, um momento singular da história contemporânea. Mais do que nunca, a existência de duas orientações políticas absolutamente incompatíveis afirma-se de modo claro e inequívoco em Portugal e na Europa. Se, com a queda do muro de Berlim, os antagonismos pareceram esbater-se graças à momentânea ilusão do crescimento homogéneo e equilibrado dos estados, no momento actual, como em nenhum outro momento do nosso passado recente, temos diante de nós a evidência nítida de um radical projecto ideológico de matriz neo-liberal, assente num capitalismo financeiro canibalesco e sinistro, que procura impor-se como destino único de uma Europa à deriva.

Não existe, hoje, de todo, qualquer fundo comum de valores partilhados entre aqueles que chegaram ao poder a aqueles que acreditam numa Europa livre, aberta, plural, democrática e justa – uma Europa socialista. Porque o plano que está a ser posto em marcha pelos governos de direita e extrema-direita não é simplesmente mais uma manobra táctica, provisória, eleitoral, mas traduz antes uma estratégia de fundo, preparada há várias décadas e a aguardar o momento certo para sair da gaveta. O seu grande objectivo é tão simples quanto isto: proceder a uma destruição sistemática e meticulosa do património cultural, enquanto património político e social, da Europa das democracias. O que têm em comum pessoas como Nicolas Sarkozy, Angela Merkel, David Cameron, Mariano Rajoy ou Pedro Passos Coelho? Todos eles alimentam a sua acção política por um desejo de "ajuste de contas" com o passado: porque os desígnios de uma Europa verdadeiramente democrática, assente em valores de justiça social e económica, igualdade, justa distribuição da riqueza, internacionalismo solidário, soberania e autodeterminação são-lhes profunda e visceralmente incómodos, estes líderes e aquilo que eles personificam desejam, com uma vontade que nos deve inspirar receio e horror, limpar da face da Europa todos os vestígios de uma tradição de progresso colectivo e emancipação humana. Todos eles, sem excepção, representam o retorno a uma ordem global atravessada por valores de um individualismo primário, pelo corporativismo financeiro, pela desarticulação das estruturas de empenhamento colectivo e oposição organizada (o demonstrado ódio aos sindicatos, a neutralização da oposição com "memorandos de entendimento" a fazer lembrar os "pactos" hitlerianos, a imposição do pensamento único e a

rejeição de caminhos alternativos, a forma como toleram a violência explícita quando exercida sobre os adversários, são disto prova suficiente).

Nada podia ter sido mais elucidativo da "revolução tranquila" a que Passos Coelho aludiu no congresso do PSD do que a imagem divulgada pela JSD no mesmo dia, e que serve de capa à moção apresentada por aquela juventude partidária ("Moção L", subscrita pela Comissão Política Nacional da JSD, disponível online). Na imagem, vê-se, como fundo, e a preto-e-branco, uma fotografia captada durante uma manifestação de jovens trabalhadores. Na faixa que os manifestantes traziam, os elementos da JSD colocaram, graças a uma montagem informática, a frase «Estamos em luta! Contra os direitos adquiridos!». Ao lado, junto a um megafone, pode ler-se "Contra a ditadura do mercado laboral fechado"; e abaixo, as palavras de ordem da JSD: «Flexibilidade laboral; empreendedorismo; oportunidades para todos; novas soluções». A declaração de intenções dificilmente poderia ser mais clara – e mais insultuosa. Por debaixo de toda a retórica liberalizante, é impossível não compreender a monstruosidade com que nos confronta o projecto do PSD para o país: a rotura completa e acabada com uma narrativa de progresso social, de crescimento justo, de valorização do trabalho, de regulamentação laboral e protecção dos direitos inalienáveis dos trabalhadores, bem como dos sectores sociais mais frágeis – jovens, desempregados, reformados e pensionistas. A "revolução tranquila" é a asfixia lenta e implacável do património social democrático – é a morte silenciosa do conteúdo da nossa democracia enquanto projecto de futuro, consumada no colapso delirante, inconsciente e bárbaro de uma juventude que clama pela extinção dos direitos laborais, precipitando-se alegremente no abismo.

Mas este ataque não visa somente as conquistas da democracia saída de Abril de 74. Ele veicula, no seu íntimo, um velho desejo revanchista e inconfessável de fracturar e pôr termo a uma certa visão do mundo: uma visão do mundo baseada na convicção de que a história não terminou por aqui, convicção de que é possível reinventar o modo como vivemos em sociedade, rumo a um futuro mais justo. Este ideal, que animou as grandes conquistas das sociedades ocidentais, inspira um desprezo sobranceiro e assombroso àqueles que, contra todas as evidências, tentam convencer a população de que só empobrecendo poderemos crescer.

A orientação que este governo encarna define-se pela sua relação com o passado colectivo como trauma e como recalcamento: o mal-estar próprio de quem não consegue olhar para a vida colectiva de um país sem sentir ressentimento pelos laços que nos unem e ditam a fraternidade de quem luta por um futuro melhor. E talvez este seja apenas o mais recente sintoma da "ressaca imperial" que a nossa história recente transporta consigo, e que Eduardo Lourenço assinala.

Já ninguém acredita verdadeiramente que este caminho nos possa levar a nada de bom. É preciso dizê-lo, não podemos manter o véu diáfano do silêncio: o desespero morno com que os portugueses hoje olham o seu país acusa o naufrágio do projecto político que nos governa. É preciso parar isto enquanto é tempo, e o nosso tempo está a esgotar-se. Por vezes, uma minoria, mesmo uma minoria absoluta, pode ser o verdadeiro rosto de um país, como nos ensinou a Resistência Francesa. Nunca essa lição histórica nos foi tão necessária quanto hoje.