Tudo o que é sólido se dissolve no ar.

Karl Marx

1. Nada pode ser mais absurdo do que negar a dimensão ideológica do programa do actual governo PSD/CDS-PP, escudado no “memorando de entendimento” assinado com a troika estrangeira. Não há nada de “técnico” em aplicar um programa de liberalização selvagem da economia, privatização de património público, destruição de empregos, delapidação de direitos laborais e apropriação indevida de parte dos rendimentos do trabalho, alienação do Estado Social, ou financiamento público da actividade especulativa da banca. E nem por ser muitas vezes repetida essa mentira se torna real: é urgente dizer sem margem para ambiguidades que aquilo a que o actual governo de direita chama “reformas estruturais” é, sim, o mais radical programa político neo-liberal capitalista de que há memória neste país. Num artigo colectivo publicado no espanhol «El País», de 11 de Julho, com o título “Así están Grécia, Irlanda y Portugal”, os autores, depois de passarem em revista a situação de um país “em luta com um défice que derrapa todos os dias, um desemprego que sobe sem parar, uma economia que encolhe a um ritmo de 3% ao ano” e uma supressão de subsídios “considerada ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”, concluem: “A economia portuguesa gira sobre o abismo, canibalizando-se a si mesma, devorada pelos seus próprios cortes.”    

2. Por muito que repitam as mesmas mentiras e ilusões, não conseguirão nunca esconder a realidade. O actual governo PSD/CDS-PP está a implementar um modelo baseado em altos índices de desemprego e (consequentemente) salários baixos e ao nível da mera sobrevivência, trabalho sem direitos e generalização da precariedade laboral - esta é a sua definição de “competitividade”. Que o assumam de uma vez por todas, e deixem de tentar enganar os portugueses, tentando fazer acreditar que com esta “receita” algo vai melhorar: toda a gente vê o caminho para onde levam o país. Ninguém no seu perfeito juízo acredita, hoje, que estaremos melhor se insistirmos nesta deriva selvagem. Já ninguém acredita que a “austeridade” possa conduzir a um futuro melhor: por aqui, todos percebemos, o caminho é sempre a descer - pelo menos, para quem vive apenas do seu trabalho. Como aquele Ministro da Propaganda de Saddam Hussein que garantia a pés juntos que os invasores norte-americanos haviam sido totalmente rechaçados na fronteira pelas tropas iraquianas, quando Bagdade já estava cercada e queda da cidade estava por horas, este governo perdeu o sentido da realidade, e parece já não ter a perfeita noção do que se passa “cá por baixo”. Não pode, porém, exigir a dez milhões de pessoas que o acompanhem nesta aventura delirante e suicidária.

3. No Relatório de Primavera 2012 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, intitulado “Crise e Saúde: Um país em sofrimento”, a existência de um “racionamento implícito” nos cuidados de saúde é abertamente denunciada, bem como o aumento dos custos do acesso à saúde, conduzindo mesmo a situações de não medicação. Quem assumirá os custos não contabilizáveis deste flagelo? As consequências ao nível psicossomático, emocional, comportamental? A atmosfera de incerteza e medo em que estamos a criar as crianças do nosso tempo? Os deslocamentos forçados, a separação de famílias, a humilhação, as feridas que nunca irão sarar? O aumento das taxas de suicídio? Não há fundo de resgate capaz de pagar este preço. Pela primeira vez desde a última grande guerra, a Europa vive em estado de excepção permanente: sem um horizonte de expectativas para o dia de amanhã, propõem-nos que abdiquemos do nosso presente, em nome de um futuro que sabemos que nunca chegará - ou virá demasiado tarde para muitos. A Europa é isto, afinal?

4. Há dois anos, o escândalo de um processo obsceno de expulsão de comunidades étnicas no centro da Europa dava o mote para a proclamação do falhanço do modelo multiculturalista. Ironicamente, o verdadeiro falhanço deste modelo dá-se a ver hoje, e os protagonistas são, afinal, os acusadores de ontem: mal se colocou a possibilidade da saída da Grécia da zona Euro, o eixo político França-Alemanha reclamou de imediato a suspensão do tratado de Schengen e o restabelecimento das fronteiras. Onde está, agora, a vontade de integração dos povos e culturas? Onde, a valorização da diferença e a união na diversidade? Onde, a solidariedade e cooperação por uma Europa mais coesa? Todas essas baladas caíram como um castelo de cartas, e o carácter predatório do projecto europeu - uma Europa dos, e para os monopólios internacionais do capital - revela-se em todo o seu oportunismo e decadência.

5. A total incapacidade de criação de uma resposta ao actual cenário de crise - uma crise que é política, antes de ser económica - no quadro do modelo neo-liberal capitalista fica patente na inépcia com que o PS, marcado por um passado recente de políticas ao serviço do capital, tenta sem efeito fazer um simulacro de oposição. Seguindo o conhecido esquema do “polícia bom / polícia mau”, tentam fazer crer que com eles seria tudo diferente, ainda que reconheçam que fariam tudo igual. Nada poderia evidenciar mais claramente a natureza histórica e sistémica da actual crise: ela é, antes de mais, uma crise do sistema capitalista, cujas contradições não poderiam seguir adiante indefinidamente. De acordo com dados recentes, de todas as transacções feitas em bolsa ao longo do último ano nos EUA, o total das que estavam directamente relacionadas com recursos físicos efectivamente existentes foi inferior a 2% - sim, dois por cento. O filósofo esloveno Slavoj Zizek costuma dizer que o momento presente é como aquela cena típica, nos desenhos-animados, onde uma personagem em fuga continua a correr desesperadamente mesmo para além da beira do precipício. Enquanto corre no ar sobre o abismo, alguém lhe toca no ombro e aponta para o chão. Só quando se dá conta de que não tem nada debaixo dos pés é que a personagem cai no vazio. E todos nós somos, hoje, chamados a tocar no ombro de quem defende a continuidade deste sistema, e dizer: “Hei, olha para baixo.”    

6. As pessoas perdem o medo quando sentem que não têm nada mais a perder. Ninguém poderá afirmar, com indubitável certeza, que esse dia chegou - a história é pródiga em conclusões precipitadas, e não devemos subavaliar a capacidade deste sistema para se “remodelar” e fazer passar por novo o que é velho (o conceito de “empreendedorismo” está aí para o provar...). Mas uma coisa parece garantida: perdeu-se a inocência da crença na “bondade” de um sistema baseado no lucro, na “superioridade ética” da economia de mercado e na “autoregulamentação” da economia, nas “soluções infalíveis” como a ideia de que empobrecendo, as coisas melhoravam. E, com isso, o sistema neo-liberal sofreu um abalo do qual dificilmente recuperará. Afinal, a história não acabou por aqui.